Bombeiro: o amigo certo nas horas incertas
Por Clodoval de Barros Pereira. Brasília/DF, 25/09/1997.
Acertar numa profissão que se adeque às nossas aptidões não é uma tarefa fácil. Se o ofício não for o que desejamos, tropeçaremos nas maiores dificuldades e levaremos a vida claudicando. Sobre isso, inclusive, há um provérbio que expressa uma pertinente reflexão: “vento algum sopra a favor de quem não sabe para onde vai”. Talvez seja essa uma das razões que pesem na escolha de uma profissão. Eu mesmo já vi homens togados dizendo que usavam a Lei como um instrumento sagrado, um cinzel com o qual esculpiram as sentenças que seriam aplicadas aos infligidores das Leis. Pura mentira! Não demorei a encontrá-los emporcalhando os Tribunais com o odor fétido que exalava dos seus veredictos. Haviam abominado o juramento, desprezado o Livro da Lei e de cutelo na mão e olhar ameaçador, mercadejavam sentenças. Passaram a achar que honra era coisa abstrata e que estando de bolso cheio podiam nivelá-los aos corruptos ou aos carrascos que pouco lhes importava. Também cruzei com políticos que batiam no peito e diziam defender a causa do povo, mas quando os cargos lhes foram acenados, desvencilharam-se dos companheiros e passaram a roê-los como se fossem abutres. Pareciam hienas famintas, rosnando para defender a presa. E, tal quais os merecedores de sentenças, ameaçavam quem não silenciasse diante de suas falcatruas.
Por outro lado, é bom falar de homens que abraçaram ofícios honrosos e não empanturraram a barriga dos filhos com o sustento roubado. Esses sim, além de fazerem da profissão um sacerdócio, desempenham com brilhantismo as tarefas que lhes foram confiadas. Também pudera, o mundo não é composto somente de seres execráveis. Tenho convivido com homens e mulheres que enobrecem sua espécie, tanto pelos dotes humanos como pelo exemplar desempenho profissional.
Para exemplificar, cito um cabo que servia no Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, cujo nome me foge à memória, contudo, aproveitarei esse lapso para homenageá-lo em cada bombeiro que os meus olhos alcançarem. Esse bombeiro de quem passarei a falar era um ser dotado de excelentes qualidades morais e humanas, tal qual a grande maioria dos que abraçam essa profissão. Foi durante o incêndio que destruiu o edifício Joelma, numa sexta-feira de fevereiro de 1974, que passei a conhecê-lo e admira-lo. Assisti ao vivo, pela televisão, o triste desenrolar daquela tragédia acontecida na capital paulista. Jamais esquecerei da sua luta para salvar as pessoas envolvidas no fogaréu.
Posteriormente, foi constatado que, das 756 pessoas que estavam no prédio, 40 pularam dos altos andares para fugir das chamas, enquanto outras 139 morreram queimadas, o que veio a totalizar 179 mortas e mais de trezentas com ferimentos e queimaduras, fora as que foram salvas por helicópteros e outros meios usados pelos bombeiros. Na batalha contra as chamas, o cabo se sobressaiu como um dos heróis daquele momento. Acompanhei sua chegada ao local do sinistro e vi sua aflição diante das tochas humanas que se atiravam pelas janelas do edifício. Lembro-me que, ao ver essas tochas voando ao encontro da morte no asfalto duro da rua, o bombeiro se afligiu tanto que se abraçou à viatura que o transportou, bateu com a testa de encontro ao capô e num berro que parecia um animal acuado, gritou: - Meu Deus!
Era como se pedisse ao Bombeiro Maior ajuda para transpor a fumaça negra que escurecia as escadarias do edifício em chamas. Refeito, enveredou por entre a fumaça negra e sumiu escadaria acima. Acho que seu grito ainda ecoava no labirinto das ruas tomadas de gente consternada com o acontecimento, quando retornou das labaredas trazendo nos braços uma criança desfalecida. A menina tinha as vestes, os cabelos e o corpo chamuscado pelo fogo, mesmo assim, antes de entregá-la ao bombeiro médico, beijou-lhe a face, umedecendo-lhe as queimaduras com as lágrimas que rolavam dos seus olhos avermelhados pela imensa quentura. Eram lágrimas de felicidade por ter salvo a vida de criança que ele nem sequer sabia como se chamava. O gesto do bombeiro, além de emocionar a Nação, estreitou os laços que unem os homens nas grandes travessias. Quantas vezes o cabo voltou ao inferno ardente não contamos. Impossível enumerar os feitos de um bombeiro em luta para salvar pessoas encurraladas gritando por socorro. Os bombeiros não vacilam na hora de socorrer. Atiram-se ao fogo, jogam-se nas águas e mergulham nos escombros, mesmo sabendo que a morte o espreita a cada investida. E às vezes são dez, vinte, cinqüenta que pulam na escuridão de um poço para salvar a vida de uma criança, de um mendigo, de um operário soterrado.
Somente quem precisou dos bombeiros, diante das grandes tragédias, sabe o quanto eles são solidários e corajosos. Felizes daqueles que, num momento de desventura, possam contar com um deles ao seu lado. E a dona Morte sabe tanto disso, que dificilmente se aproxima de quem um bombeiro estende a mão. Ela sabe que o bombeiro lhe dificulta as ações e o seu ofício só rende usando a tocaia, como fez com o herói de quem eu falo, emboscando-o quando a caminho doutra catástrofe, onde outras pessoas encurraladas por labaredas gritavam por socorro.
Aquele triste acidente, além de roubar a vida do nosso irmão, condenou uma mulher à viuvez e duas crianças à orfandade. Foi caro o preço que ele pagou para desempenhar a nobre missão de salvar.
Muitos bombeiros já perderam suas vidas na luta contra as catástrofes, mas deixaram conosco os mais belos exemplos de amor e solidariedade. É combatendo a morte com destemor que o homem cresce e se destaca como um ser respeitável, bom e puro. E eu respeito e admiro esses seres que se destacam na faina do bem e não deixo de reverenciá-los nos bombeiros que os meus olhos alcançam nas ruas.
Que bela profissão! Ser bombeiro é ser divino, é viver para salvar.
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Bombeiro: o amigo certo nas horas incertas
Por Clodoval de Barros Pereira. Brasília/DF, 25/09/1997.
Acertar numa profissão que se adeque às nossas aptidões não é uma tarefa fácil. Se o ofício não for o que desejamos, tropeçaremos nas maiores dificuldades e levaremos a vida claudicando. Sobre isso, inclusive, há um provérbio que expressa uma pertinente reflexão: “vento algum sopra a favor de quem não sabe para onde vai”. Talvez seja essa uma das razões que pesem na escolha de uma profissão. Eu mesmo já vi homens togados dizendo que usavam a Lei como um instrumento sagrado, um cinzel com o qual esculpiram as sentenças que seriam aplicadas aos infligidores das Leis. Pura mentira! Não demorei a encontrá-los emporcalhando os Tribunais com o odor fétido que exalava dos seus veredictos. Haviam abominado o juramento, desprezado o Livro da Lei e de cutelo na mão e olhar ameaçador, mercadejavam sentenças. Passaram a achar que honra era coisa abstrata e que estando de bolso cheio podiam nivelá-los aos corruptos ou aos carrascos que pouco lhes importava. Também cruzei com políticos que batiam no peito e diziam defender a causa do povo, mas quando os cargos lhes foram acenados, desvencilharam-se dos companheiros e passaram a roê-los como se fossem abutres. Pareciam hienas famintas, rosnando para defender a presa. E, tal quais os merecedores de sentenças, ameaçavam quem não silenciasse diante de suas falcatruas.
Por outro lado, é bom falar de homens que abraçaram ofícios honrosos e não empanturraram a barriga dos filhos com o sustento roubado. Esses sim, além de fazerem da profissão um sacerdócio, desempenham com brilhantismo as tarefas que lhes foram confiadas. Também pudera, o mundo não é composto somente de seres execráveis. Tenho convivido com homens e mulheres que enobrecem sua espécie, tanto pelos dotes humanos como pelo exemplar desempenho profissional.
Para exemplificar, cito um cabo que servia no Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, cujo nome me foge à memória, contudo, aproveitarei esse lapso para homenageá-lo em cada bombeiro que os meus olhos alcançarem. Esse bombeiro de quem passarei a falar era um ser dotado de excelentes qualidades morais e humanas, tal qual a grande maioria dos que abraçam essa profissão. Foi durante o incêndio que destruiu o edifício Joelma, numa sexta-feira de fevereiro de 1974, que passei a conhecê-lo e admira-lo. Assisti ao vivo, pela televisão, o triste desenrolar daquela tragédia acontecida na capital paulista. Jamais esquecerei da sua luta para salvar as pessoas envolvidas no fogaréu.
Posteriormente, foi constatado que, das 756 pessoas que estavam no prédio, 40 pularam dos altos andares para fugir das chamas, enquanto outras 139 morreram queimadas, o que veio a totalizar 179 mortas e mais de trezentas com ferimentos e queimaduras, fora as que foram salvas por helicópteros e outros meios usados pelos bombeiros. Na batalha contra as chamas, o cabo se sobressaiu como um dos heróis daquele momento. Acompanhei sua chegada ao local do sinistro e vi sua aflição diante das tochas humanas que se atiravam pelas janelas do edifício. Lembro-me que, ao ver essas tochas voando ao encontro da morte no asfalto duro da rua, o bombeiro se afligiu tanto que se abraçou à viatura que o transportou, bateu com a testa de encontro ao capô e num berro que parecia um animal acuado, gritou: - Meu Deus!
Era como se pedisse ao Bombeiro Maior ajuda para transpor a fumaça negra que escurecia as escadarias do edifício em chamas. Refeito, enveredou por entre a fumaça negra e sumiu escadaria acima. Acho que seu grito ainda ecoava no labirinto das ruas tomadas de gente consternada com o acontecimento, quando retornou das labaredas trazendo nos braços uma criança desfalecida. A menina tinha as vestes, os cabelos e o corpo chamuscado pelo fogo, mesmo assim, antes de entregá-la ao bombeiro médico, beijou-lhe a face, umedecendo-lhe as queimaduras com as lágrimas que rolavam dos seus olhos avermelhados pela imensa quentura. Eram lágrimas de felicidade por ter salvo a vida de criança que ele nem sequer sabia como se chamava. O gesto do bombeiro, além de emocionar a Nação, estreitou os laços que unem os homens nas grandes travessias. Quantas vezes o cabo voltou ao inferno ardente não contamos. Impossível enumerar os feitos de um bombeiro em luta para salvar pessoas encurraladas gritando por socorro. Os bombeiros não vacilam na hora de socorrer. Atiram-se ao fogo, jogam-se nas águas e mergulham nos escombros, mesmo sabendo que a morte o espreita a cada investida. E às vezes são dez, vinte, cinqüenta que pulam na escuridão de um poço para salvar a vida de uma criança, de um mendigo, de um operário soterrado.
Somente quem precisou dos bombeiros, diante das grandes tragédias, sabe o quanto eles são solidários e corajosos. Felizes daqueles que, num momento de desventura, possam contar com um deles ao seu lado. E a dona Morte sabe tanto disso, que dificilmente se aproxima de quem um bombeiro estende a mão. Ela sabe que o bombeiro lhe dificulta as ações e o seu ofício só rende usando a tocaia, como fez com o herói de quem eu falo, emboscando-o quando a caminho doutra catástrofe, onde outras pessoas encurraladas por labaredas gritavam por socorro.
Aquele triste acidente, além de roubar a vida do nosso irmão, condenou uma mulher à viuvez e duas crianças à orfandade. Foi caro o preço que ele pagou para desempenhar a nobre missão de salvar.
Muitos bombeiros já perderam suas vidas na luta contra as catástrofes, mas deixaram conosco os mais belos exemplos de amor e solidariedade. É combatendo a morte com destemor que o homem cresce e se destaca como um ser respeitável, bom e puro. E eu respeito e admiro esses seres que se destacam na faina do bem e não deixo de reverenciá-los nos bombeiros que os meus olhos alcançam nas ruas.
Que bela profissão! Ser bombeiro é ser divino, é viver para salvar.
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